A reforma Tributária – O Demônio e os anjos

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Marcelo Barreto de Araujo – Consultor Jurídico da Presidência da CNC

A reforma tributária representa um pacto constitucional entre as unidades federativas do Brasil – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – em prol de maior racionalidade e simplificação do atual sistema tributário do País, metas a serem alcançadas mediante composição dos diferentes interesses fiscais destas unidades, as quais, todavia, não admitem qualquer perda na arrecadação de seus tributos. Eis porque as Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) até agora apresentadas anseiam por um equilíbrio financeiro que logre alcançar um consenso nacional.

A PEC 110/2019, em trâmite no Senado federal, reproduz o texto da PEC 293-A/2004, aprovada por Comissão Especial da Câmara dos Deputados, cujo relator foi o ex-deputado Luiz Carlos Hauly. Seu principal objetivo é a redução da quantidade de tributos no País, criando-se o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o imposto sobre bens e serviços específicos (imposto seletivo), em substituição a nove tributos, quais sejam o IPI, IOF, PIS/Pasep, Cofins, Salário-Educação, Cide-combustíveis, ICMS e o Imposto sobre Serviços (ISS). A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido é incorporada ao imposto de renda.  Lei Complementar fará a regulamentação completa da mencionada PEC, inclusive a fixação de alíquotas e a enumeração dos produtos e serviços que estarão incluídos no imposto seletivo, de natureza federal, e aqueles que serão tributados pelo IBS, de natureza estadual.  Fica criado o Comitê Gestor da Administração Tributária Nacional, composto por representantes da administração tributária estadual, distrital e municipal para instituir regulamentações diversas sobre a cobrança dos novos tributos, gestão compartilhada de bancos de dados e diretrizes gerais para as autoridades tributárias dos três níveis da Federação, entre outras questões. Haverá longa transição de 15 anos até que a nova sistemática tributária seja efetivamente implantada. Esta PEC está tramitando na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, onde o relator, senador Roberto Rocha, apresentou parecer, propondo uma fórmula “dual”, capaz de reduzir controvérsias legislativas: um novo imposto unificaria apenas os atuais tributos federais e outro substituiria apenas o ICMS e o ISS. Para que funcione esta proposta, tais tributos precisarão ser regulamentados por lei complementar que definirá, por exemplo, as alíquotas a serem praticadas.

Por seu turno, a PEC 45/2019, em debate na Câmara dos Deputados, abriga o mesmo princípio adotado na PEC 110/2019, qual seja aglutinar tributos para descomplicar o sistema tributário brasileiro. Neste sentido, cria-se igualmente o IBS, que substitui apenas cinco tributos atuais, a saber: o IPI, ICMS, ISS, Cofins e PIS. Também se imaginou criar, no âmbito federal, impostos seletivos, porém com características próprias, ou seja, “com finalidade extrafiscal, destinados a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos”, a serem definidos em lei regulamentadora. A substituição dos tributos atuais pelo IBS será feita de forma gradual, em 10 anos. Haverá, porém, uma longa transição de 50 anos até que se opere a plena distribuição da nova receita entre os entes federativos. Por sua vez, a alíquota do IBS será formada pela soma das alíquotas fixadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.  Há, também, a previsão do Comitê Gestor do IBS, que vai gerir a arrecadação centralizada do imposto, entre outras atribuições, ficando estipulado ainda, a exemplo da PEC 110/2019, que esta proposta será disciplinada por lei complementar, obedecidos os critérios constitucionais previamente fixados.

Em apertada síntese, este é o relato das PECs em curso no Congresso Nacional, mas se avizinha igualmente uma proposta do governo, já prometida reiteradas vezes pelo ministro Paulo Guedes. Independentemente de quantas propostas sejam analisadas pelo Poder Legislativo, persistirão questões referentes à equalização dos interesses da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Por exemplo, as cidades de maior porte se prejudicariam com os recursos hoje arrecadados pelo ISS, já que este tributo é cobrado onde o serviço é prestado (local de origem), enquanto o IBS seria pago onde o produto ou serviço for consumido (local de destino). As perdas foram calculadas em R$ 13,2 bilhões por ano para municípios cuja população exceda 2 milhões e meio de habitantes.

Também será desafiante equilibrar interesses dos diversos setores da economia do País. Considerando que a nova tributação prevista na PEC 45/2019 onera a produção de alimentos, o agronegócio se movimenta para trabalhar regras ali contidas para que seja garantida a esta atividade econômica uma alíquota menor “desenquadrada” da chamada “alíquota padrão” do IBS, a ser definida em lei Complementar. A área da construção civil também reclama, alegando que o IBS não permitirá que um dos maiores insumos do setor, a mão de obra, obtenha crédito fiscal. Por outro lado, os demais créditos não inibirão o possível aumento da carga tributária do setor, segundo cálculos elaborados pela Câmara Brasileira de Indústria de Construção. Outros pleitos, igualmente justos, existem na área empresarial. Há diferentes demandas na reforma tributária em relação ao comércio e serviços, o que impõe algo essencial, qual seja a calibragem das alíquotas, em atenção à necessária distinção das atividades econômicas que sofram maiores impactos tributários. Neste caso, a moderação das alíquotas já deve ser sinalizada na própria PEC, para que tenhamos proteção constitucional antes de discutirmos a matéria em futura lei complementar.

Demonstrando que a reforma tributária é um livro de receitas para vários sabores, existem outras discussões que estão acontecendo. O renomado economista Paulo Rabello propõe uma inovação, a criação da Operadora Nacional de Distribuição da Arrecadação (ONDA), sistema inteiramente digital, em que os algoritmos atuariam para promover a redistribuição de tributos em favor dos entes federativos, sem necessidade de atuação do Comitê Gestor. E tantos outros reclamam que a tributação sobre produtos e serviços se tornará obsoleta se ela não incidir também sobre a nova tecnologia construída pela economia digital, como a tributação sobre as atividades dos robôs desenvolvidos para “mineração” e  armazenagem de dados, que rendem às empresas de inteligência artificial bilhões de dólares em todo o mundo.

Enfim, como diz o ditado, o “diabo mora nos detalhes”. Mas sempre haverá “anjos da concórdia” em busca da harmonia.

 ***Fontes:

Jornal “ O Globo”, fls 15, de 20.09.2019.

Jornal  “Valor”, de 26.09.2019, fls A20 e A29; de 27.09.2019, de 28.09.2019 a 30.09.2019, fls E2 e A5.

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